Introduction

Atlas

Um real e ficcional. Uma paisagem, uma palavra, uma fantasmagoria, cuja a imagem concerne uma apologia ao “universal”. Universalizante. Suas desinências, seus múltiplos significados repletos de delusão revelam o Abismo, concernem poder. Este pélago profundo na paisagem conduziu o extremo para uns, e uma convenção suave e aproveitável para outros, o Atlântico.

Nesse realismo austero e individual do Ocidente, Atlas tanto é titã da mitologia grega, condenado por Zeus a “sustentar os céus” para toda a eternidade, por ter tentado atacar o monte Olimpo. Conhecido pela imagem em que carrega o mundo às costas, literalmente, apoiado sobre um outro atlas que é a primeira vértebra cervical da coluna. Como o conjunto de mapas cartográficos; e o volume de ilustrações elucidativas de um texto ou de uma área do conhecimento.

Oceano Atlântico, outrora conhecido por Mar Tenebroso, cujo nome deriva precisamente do titã mencionado anteriormente e que remete a essa imagem, do mundo ocidentalizado. Imagem que seria utilizada pelo pensamento tríptico imperial-colonial-ocidental e que concebe a relação entre humano e o mundo a partir de uma relação de poder. Atlântico, esse sedimento, que foi palco das invasões coloniais e tráfico de pessoas escravizadas perpetuou dores e traumas, através do seu nomadismo em flecha. Mediado pela pulsão totalitária de raiz única.

  

Contudo, um atlas pode referir-se a uma metodologia do olhar: como o Atlas Mnemosyne* de Aby Warburg, que surge como ponto inicial do nosso trabalho e pesquisa.

No fundo, é uma cartografia de imagens e significados: um jogo semiótico que pode ser feito por qualquer pessoa adulta ou criança. Coloca-se uma imagem na parede, damos um passo atrás e observamos de longe.

Esta imagem lembra-nos uma outra, que colamos ao seu lado. E essa lembra outra, que lembra outra que se conecta com a primeira. É um mapa que deixa de ser mental e passa a ser uma enorme constelação de imagens, que nos ajudam a construir uma visão relacional mais ampla da nossa memória, história e identidade.

A partir da associação livre de imagens, identificando padrões, semelhanças, diferenças e construções de pensamento, e é possível ter um entendimento mais amplo e não-linear da história. Assim, poderemos entender o colonialismo e a história do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas de uma forma rizomática, compreendendo as suas marcas no mundo contemporâneo, ao invés de a entender como um evento circunscrito num momento histórico específico.

A brincadeira surge como um ato provocador e de resistência à elitização da cultura e da investigação.

  

Queremos opor-nos à seriedade com que a identidade nacional é encarada, uma vez que não nos interessa fazer parte de narrativas cujo objetivo é a divisão entre o pertencimento/não-pertencimento de determinados indivíduos num grupo social ou território. Não somos heróis do mar, nem queremos ser.  

As imagens contam histórias inventadas, consolidadas ao longo de séculos e através das mais violentas estratégias. Que imagens formam a nossa memória coletiva? A nossa história? A nossa identidade? Quem sou eu? Quem é o Outro?

Project

About the Project

Atlas é um projeto de pesquisa e criação artística, que cruza o audiovisual com o design, para se debruçar sobre a imagem e o seu papel na construção de narrativas eurocêntricas coloniais.

Com um foco nos chamados “descobrimentos” (invasões coloniais) e nos seus mitos, o trabalho pretende desdobrar e brincar com os “símbolos da nação” através de uma instalação audiovisual, que procura desconstruir a mitologia epopeica colonialista portuguesa através da ficção e fricção de narrativas. 

O projeto parte da investigação através da prática criativa e engloba uma exposição audiovisual, conversas abertas ao público, workshops e este web-atlas onde é possível navegar através das imagens que, ao longo de séculos, construíram a ideia da epopeia colonial portuguesa. Este projeto pretende evidenciar a complexidade daquilo a que chamamos “História” e da construção narrativa através da propaganda, da força e do silenciamento, partindo de quatro símbolos: a caravela, a cruz, o açúcar e a bandeira.  

O projeto teve como base as investigações individuais da equipa nuclear e começou a ganhar forma com a seleção na open call: “MANIFEST: Novas perspectivas artísticas sobre as memórias do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas” - um projeto artístico e educativo, co-criado pela Comissão Europeia, sob o programa Europa criativa, que visa contribuir para a reimaginação da memória colectiva da Europa sobre o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. 

Esta seleção incluiu duas residências artísticas, em Zsennye e em Lisboa, e resultou numa exposição coletiva, em Nantes, cidade portuária e com uma história intimamente ligada ao tráfico transatlântico. 

O projeto inclui assim uma exposição audiovisual composta por 4 obras, que partem dos símbolos mencionados acima, este web-arquivo, um workshop direcionado para estudantes de mestrado em design, através de uma parceria com a Faculdade de Belas Artes do Porto e o Mestrado em Design da Imagem e duas conversas abertas ao público.

Historical Note

Historical Enfabulations and Collective Memory

Foi por volta de 1415, com a invasão e “conquista” de Ceuta, por parte da coroa portuguesa, que o projeto de expansão e colonização português teve início. Fama, fortuna e glória eram a motivação da corte, do clero e dos navegadores. Depois do Bojador, na costa africana, a américa latina, a volta ao mundo… 

Em portugal falamos das navegações e invasões colonialistas sob o nome d“os descobrimentos” com “D” grande. É o nosso maior feito histórico, um motivo de orgulho nacional, a nossa identidade. Não há nenhum outro tópico que se aprenda com tanta garra na escola, na história ou na literatura. Camões não esticaria o braço no meio do oceano se os Lusíadas não fossem a bíblia do que é ser português*. 

Mas de onde vem toda esta nostalgia imperial? Como pode o colonialismo, a ocupação forçada de território, o extermínio de civilizações, a escravização e o deslocamento de milhões de pessoas ser sinónimo de “progresso”, de “heroísmo” e “coragem”?  

 

A construção de uma narrativa ocidental e imperial levou o seu tempo a construir e séculos a solidificar-se. Em Portugal, a colonização e as navegações que deram início às invasões coloniais e ao tráfico transatlântico são ensinadas a partir de um ponto de vista linear e progressista da história, onde vários mitos se tornam a base da identidade nacional.

Em cerca de 1441, desembarcou em Lisboa o primeiro de muitos navios com pessoas escravizadas, capturadas em vários territórios africanos. O episódio é consagrado por Gomes Eanes de Zurara, na famosa crónica dos feitos da Guiné. Este texto é um registo histórico não só da fase inicial do que viria a ser “a grande catástrofe”*, mas é também uma descrição do ponto de vista do colonizador, que justifica e argumenta a razão destes atos de violência com aquilo que são, ainda hoje, os grandes mitos de efabulação colonizadora: o direito a ocupação de territórios por uma suposta “descoberta”, a missão evangelizadora e de salvação do Outro não cristão; a ideia de missão civilizatória que pressupõe o Outro como inferior e inimigo do “progresso”.

Durante os séculos seguintes, milhões de pessoas foram capturadas e traficadas pelo Atlântico, levadas para as Américas, fraturando e devastando culturalmente, politicamente e economicamente o continente africano. Milhares de povos indígenas americanos foram mortos ou forçados à conversão da religião católica e os seus territórios foram usurpados e devastados. Milhões de pessoas foram forçadas a perder as suas linguas nativas, as suas culturas e a sua fé. Onde nos livros de história se lê sobre os navegadores, reis e outros “heróis” das invasões coloniais, deve entender-se que cada “conquista” teve um preço demasiado caro. A coroa portuguesa foi responsável pelo maior número de pessoas traficadas nas rotas do Atlântico, em todo o mundo, mas em Portugal, continuamos a aprender sobre esta história a partir de um ponto de vista romantizado e adocicado. 

Hoje, as repercussões da colonização e desta fabulação histórica são ainda palpáveis na desigualdade social e marginalização das comunidades afro-diaspóricas e migrantes, bem como no crescimento da extrema-direita e do conservadorismo em Portugal e na Europa, que refletem um passado colonial mal resolvido, em que o racismo, a xenofobia e ideias nacionalistas ganham força novamente como escape político para a frustração da opressão capitalista neo-liberal.

A memória e a identidade são frágeis e a imagem teve e continua a ter um relevante papel na construção de ambas. Será possível viver outros futuros, sem antes fazer desabar as estruturas do passado?


Vehicles of Critical Association

The Symbols and Myths of the Colonial Period

Cross

The cross was present throughout the process of transatlantic colonisation, as the Christian religion was used as a justification for the invasion of territories and the enslavement of non-Christian peoples.


From forced baptism to the standards planted as a symbol of territorial conquest, the cross is the symbol of Catholic violence and the forced evangelisation of other peoples, particularly the indigenous peoples who already lived in the lands occupied by the colonisers.

In Portugal, the myth of the ‘divine mission of colonisation’ is still used today.


 

Figures such as Father António Vieira, José de Anchieta and Manuel da Nóbrega, Jesuits who took part in the process of evangelisation in Brazil, are remembered as ‘defenders of Indian rights’ because they believed in the liberation of indigenous peoples through evangelisation and religious conversion.


It was a process of violence that forced indigenous peoples to cut their hair, change their languages, their clothes, their customs, in exchange for survival.

On the other hand, this religious ‘protection’ didn't apply to everyone, since the Jesuits didn't seem to have the same empathy for the enslaved blacks, who were seen by the holy faith as “savages” ‘without a soul’.

To call the Jesuit priests of colonisation ‘defenders of human rights’ is to perpetuate a violent erasure of the suffering of colonised peoples and an error of historical anachronism.


This myth helps to reinforce racist and imperialist ideas, which ignore the violence of forced religious conversion, genocide and the cultural and identity erasure of colonised peoples.


 


The cross, loaded with the symbolism of guilt and suffering, was the first object to be planted whenever the colonisers arrived in a new territory of the so-called ‘New World’.


It redeemed some and massacred others.

To this day, it personifies the binary division of the Western world: good/bad, sacred/profane, light/dark, savage/civilised, man/woman, natural/human. 

Caravel

A vessel used during colonial navigations and invasions, it is still exalted today as one of the greatest national symbols within the contemporary colonial narrative.

There are hundreds of reproductions of the image of the caravel in public and private spaces in Portugal, from engravings on building façades, illustrations in school textbooks to souvenirs for tourists.

Its most important representation is the ‘discoveries’ standard, a monument built during the Salazar dictatorship for the Portuguese World Exhibition, held in 1940, which served as a propaganda strategy to reaffirm the imperialist and colonial position of the Estado Novo (1933 - 1974).

The Caravela, the ultimate symbol of Portuguese imperialism, represents a key piece of national identity, sustained by the myth of the heroic coloniser. In schools, we learn that Portugal, despite being a small country, ‘conquered’ and ‘opened the doors to the world’, that Portuguese navigators were brave and daring to venture into unknown seas on an altruistic mission of evangelisation and civilisation.

 

In our history, they make us forget everything it cost.  

This is the artefact that underpins the usurpation, genocide, capture, trafficking and enslavement of indigenous peoples in other parts of the world.

And its image is so strong that six centuries have passed and the coloniser is still seen as a hero.

Caravel remembered, slave ship forgotten... both vessels of death, expansionism and horror.


Flag

A visual symbol that represents a sovereign country or territory and therefore also represents national identity as a concept in itself.

The fabrication and historical fabrication, which transforms slave colonialism into a story of heroes and conquerors, happens because of the need to maintain oppressive systems, often sustained by the unrealistic idea of ‘nation’.

Who belongs and who doesn't. 

The Portuguese flag bears explicit traces of this history of violence, from its colours to its symbols (castles, quinas and the armillary sphere).

The quest to maintain these ideas has been increasingly defended by conservative right-wing extremist groups, demonstrating the importance of these symbols and nationalist imagery in maintaining hegemonic power.

 

From the discussion about the images and monuments present in the public space, to the reformulation of the latest government logo into a more synthesised version, what is evident is the excessive difficulty of talking about Portugal's colonial past in the public sphere and the constant manipulation and exploitation of national symbols to rekindle ultra-nationalist, imperialist, racist and xenophobic ideas. 

 

What happens when you question a country's national identity, its history, its memory? What if we lived in a world without flags, without anthems, without borders?


Sugar

Also known as ‘White Gold’, it was one of the biggest commodities of the colonial period.

It was brought from Asia and planted for the first time by the Portuguese on the island of Madeira, where they tested what would become the plantation in Brazil. 

The introduction of sugar cane monoculture in the territory we now call Brazil was the main reason for the capture and enslavement of Africans to serve as forced labour in sugar production.

Portugal became one of the largest suppliers of sugar to the whole of Europe, thus enriching the slaveholders who profited from the lives of enslaved people and their forced labour. 

The sugar plantation and Casa Grande & Senzala function as a micro-cosmos, a physical and metaphysical territory that highlights the great imperialist and colonial machine

 

It is also on the basis of sugar and the imaginary universe that Gilberto Freyre and many others created, that the myth of racial democracy and luso-tropicalism in Brazil was fuelled, ‘sweetening’ the reality of forced miscegenation, slavery and transatlantic trafficking, the abuse and violations of black women and erasing the history of resistance of the original (indigenous) peoples and quilombolas.

The violence of this monoculture affected not only the enslaved people, but also the indigenous people who lived in these territories and the land itself, which was also exploited as property. 

 

Today, colonialism continues in other forms…

Savage capitalism encourages the idea of land ownership and privatisation, justifies invasions and expropriations, destroys everything that cannot be profited from, in the same colonising and slavery logic, where only a few profit from the work and land of others.


Colophon

ATLAS is a project developed by the artistic production structure pedro&inês (Inês Costa, Thiago Liberdade), in collaboration with Thiago Gondim e Yuri Bonfim (audio) and Atelier Mútuo (web design and development), e Dalai (Pedro Gomes, guest artist).

The project also has the collaboration of Nuno Coelho (talk moderation in Lisbon), Bárbara Monteiro (recording in Lisbon), Nina Paim (talk moderation in Porto), and Willian Ferreira (recording porto Porto).

The ATLAS project is co-financed by the União Europeia and by Direção Geral das Artes, and has the support of Gerador, CRL – Central Elétrica, Bikini Books, Centro de Investigação Artística – HANGAR, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto and Mestrado em Design da Imagem.

 

The silkscreen posters were printed by Oficina Atalaia in Porto. Oficina Atalaia, in Porto.

 

This website is formatted in ABC Helveesti, font designed by Dinamo with Andree Paat and published by the same in 2025; and Neureal, designed by Laura Csocsán and published by ECAL Typefaces in 2023.